Não
há equivalente de Edvaldo Santana na música brasileira. Digo isso de um
longínquo e ao mesmo tempo privilegiado posto de observação. Ele não é um
Elomar porque não é sedentário, não é o sábio de uma montanha; é um andarilho,
um artista em movimento. Ele não é um Cartola porque não pertence a uma
geografia, a uma agremiação é margem de muitos rios. Ao mesmo tempo, contém
todas essas histórias. Ele aproxima pontas que parecem distantes, como Celso
Blues Boy e Luiz Melodia e Augusto Campos e Arnaldo Antunes.
Por
conta de tudo isso, seus discos sempre tiveram uma admirável diversidade de
pontos de vista e de urdiduras musicais. Mas agora ele fez um álbum conceitual,
uma coisa de unidade e simetria absolutas. É como se fosse um curriculum vitae
em forma de poesia e ourivesaria sonora: Só
Vou Chegar Mais Tarde (Distribuição Tratore).
O
piano de Daniel Szafran pontua a canção 40
com um toque de boogie woogie sulista, aproxima Edvaldo de Jerry Lee Lewys. Tem
até um washboard no som - aquele instrumento de New Orleans originado de uma
tábua de lavar roupa, que espalha pequenos batuques pelas reentrâncias da
música.
A
tuba de Eliezer Tristão é que constrói as lombadas de Só Vou Chegar Mais Tarde, um
country tingido de bluegrass que tem uma crueza musical calculada, um
refinamento distraído, tipo Wilco. A voz parece que vem de algum milharal lá do
fundo.
Em
predicado, ele fala do alheamento
urbano, da solidão das pessoas em suas unidades móveis de internet ("sonho
que não foi conectado"), de novo numa canção piano-driven, dirigida pelo
piano, como dizem os críticos americanos. Quando chega ao lalalalalá delicioso
do final, a gente se pergunta: como um compositor desse nível não está no palco
de um Lollapalooza, no lugar de algum desses bostinhas que estão lá todo ano
imitando Tame Impala?
Ando livre é uma surf song ancorada numa
guitarrinha havaiana fornecida pelo maestríssimo Luiz Waack, um lorde da música
paulistana. O fio da meada da canção conduz o ouvinte como se fosse um road
movie, fazendo atravessar o País em um ritmo de outro tempo, entre Elvis e Joe
Pass, bebendo água de cacimba, tomando banho de riacho. O dueto com a cantora
Rita Beneditto parece evocar um diálogo de um encontro marcado pelo
destino.
Gelo no Joelho é um samba encoxado por sanfona e trombone
que fala sobre a posição crepuscular de um velho jogador de peladas, um craque
amador que descobriu como diminuir os trajetos dentro do campo para que o corpo
dure mais. "O tempo não para mas o tempo
passa gelo no joelho", diz Edvaldo, autor de alguns dos mais belos
hinos sobre o futebol, que ele ama - mais adiante, em DOM, ele volta ao tema com um samba, homenageando o doutor Sócrates
(Num pé pequeno, homem de coração bom) e acentuando o caráter retrospectivo do
trabalho ("Fiz minha parte/Deixo aqui minha alegria").
Retorno do Cangaço é ultrapolitizada, a canção mais chute nos bagos do lote, mas está a
milhas de ser planfetária. "A grana que sumiu tá na casa do pastor",
canta Edvaldo, numa canção de construção sonora mais assimétrica, resultado de
todas as vanguardas das quais ele se alimentou, começando pela música dos
colegas Arrigo e Itamar.
Já
a acústica Sou da Quebrada,
emoldurada pela gaita de Bene Chiréia, é a nossa equivalente de This Trains is Bound Glory, de Woodie Guthrie;
uma balada biográfica folk sobre uma geografia afetiva de Zona Leste, erguidasobre
muito tempo de camaradagem. "Sou da quebrada mais eu sou das antigas/Quem
me ensinava tinha uma letra linda".
Fazendo Aprender mostra Edvaldo, orlandosilvanamente
crooner, encontrando Tom Waits numa quebradade São Miguel Paulista.
Arte Depura descobre Edvaldo citando a si mesmo,
o primeiro disco (Lobo Solitário, de 1993),
como se fechasse um ciclo. Sob um lençol musical que usa da percussão de um
Cajón até banjo e cavaquinho, o filtro de Edvaldo depura os ouvidos.
Em
Dominio, a profissão de fé encontra
seu manifesto logo no inicio da música. "como diz Tião Carrero, amigo
Pardinho, minha viola ainda paga aluguel". Nem tudo que Edvaldo aprendeu
veio da estrada (ele desfruta da amizade de concretistas e estetas do portunhol
selvagem), mas quase tudo que o fortalece vem do movimento contínuo.
De
repente, em Cabaça na Mesa, comparece
a influência do blues rock inglês, Led Zeppelin, John Mayall, Eric Clapton, sob
um cozido de guitarra, baixo e bateria e uma vozinha de Holy Golightly
(trata-se da gigantesca Alzira Espíndola, no disco) se contrapondo à sua saga
de Zé do Chapéu do bilhar da esquina ("Eu não sei jogar com rato no meu
taco falta giz").
A
décima terceira canção é a versão musicada de Edvaldo para o poema provençal de
Guillaume de Poitiers, na tradução de Augusto de Campos. De novo acústica,
Edvaldo e Luiz Waack apenas, é o fecho perfeito de um disco autobiográfico
minucioso. Edvaldo parece ter escolhido essa por ser um manifesto da fé no
homem que se basta, no cavaleiro solitário de poucas e suficientes convicções -
nenhuma delas baseada na concessão. Essa é a vida dele.
Tem
um poema de Paulo Leminsky que diz assim: "Um bom poema leva anos/mais
cinco estudando sânscrito/seis carregando pedra/ nove namorando a vizinha/sete
levando porrada/quatro andando sozinho/três mudando de cidade (...)"
O
melhor disco do Edvaldo Santana levou 40 anos. E ele o dá assim a você de mão
beijada.
Jotabê Medeiros é
jornalista e escritor
Nessa sexta a partir das 22:00h
especial com Edvaldo Santana (Só Vou
Chegar Mais Tarde) na Web Rádio Ludovicense.
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